Cresce!

22-10-2024

Cresce!

"Cresce!" O grito soltou-se, sem pudor, no meio da multidão. Ele, atónito com a explosão, virou-se para ela, sentindo-se desnudado perante os transeuntes que o rodeavam. Abriu a boca, mas fechou-a de seguida, baixando, por fim, o olhar para o chão gasto da rua. "Cresce!", bradou ela ainda com mais força, açoitando-o publicamente, implacável. Uma humilhação consentida, aceite em silêncio.

"Crescer", pensou ele. Mesmo estando ao seu lado, ouvia a gritaria dela, ao longe, vociferando todos os impropérios que o seu vocabulário conhecia. "Crescer"…

Desde que estão juntos, ele não fez mais que ir ao encontro daquilo que ela queria, daquilo que ela determinara ser o que se espera de um marido. Não sabes cozinhar? Aprendes! Não sabes lavar uma casa de banho? Aprendes! Não sabes usar a máquina de lavar roupa? Aprendes! Não sabes limpar uma retrete? Aprendes! E tudo ele ouviu e aceitou, sem qualquer rejeição. Não fora habituado a essas tarefas quando era novo, mas, desde o início, mostrou-se pronto a fazer esse esforço. Pela sua mulher, pelo seu casamento. Pois se uma coisa tinha aprendido com a relação disfuncional e totalmente fodida dos seus pais, foi que, se mulher e homem não se empenharem para dar e receber em igual medida, a coisa, mais cedo ou mais tarde, irá desmoronar. Por isso, tudo aprendeu. Tudo fez. Mas, imperfeito, tudo falhou. Não cozinhava tão bem como ela queria. Deixava um pouquinho de pó escondido por limpar. Na retrete, uma marca de merda esquecida, num ponto menos visível. A cama não ficava devidamente alisada, nem as almofadas colocadas a régua e esquadro, na simetria exigida.

Nos primeiros tempos ouviu, calou e procurou ser melhor. E foi. Mas não o suficiente. Havia sempre algo que não estava exatamente como ela queria. E ouvia novamente. De enxovalho em enxovalho, progrediu e tornou-se a máquina com que ela sonhava.

Por fim, feliz, elogiou(-se) o marido junto às amigas. O seu "projeto", o seu orgulho, o marido perfeito. "Finalmente…", pensou ela. Tinha há muito prometido a si mesma não ser a sua mãe, não ter a vida da sua mãe, não ser uma escrava da casa e do marido como a mãe. Muitas vezes, demasiadas, viu-a a chorar às escondidas, esgotada, para de seguida petrificar o olhar, falsificar o rosto, colocar um sorriso de plástico, e voltar para a cozinha, onde ele aguardava ser servido.

"Cresce!", continuava ela a repetir berrando, no meio de uma multidão que, entretanto, tinha parado para observar aquela cena inusitada. Ele, ainda de olhos fixos no chão, cogitava na razão de tudo aquilo ter começado: pela primeira vez tinha reunido coragem para lhe dizer que não gostava que ela falasse e agisse assim com ele. Sem qualquer grito, sem um insulto e, também, sem pingo de raiva. Dissera apenas o que sentia, pedindo para também ela ser melhor. "Cresce!", foi a resposta irritada. Ele, munido de um recém-adquirido arrojo, o tal que lhe tinha faltado em todos aqueles anos, insistiu. Ela, aturdida perante o atrevimento, perdeu as estribeiras, quebrou a fachada tão cuidadosamente elaborada e explodiu no meio da rua, em plena hora de ponta.

"Cresce!", gritou ela mais uma vez, irada. Levantou a cabeça. Encarou-a nos olhos. Sem medo nem vergonha. "Sim, tens razão, está na altura de crescer!" Virou-lhe as costas e seguiu em frente, sem olhar para trás.

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